Projeto Borrifador Automático - Uma gambiarra das boas


Durante o isolamento social causado pela COVID-19, propus aos meus filhos trabalharmos em projetos de interesse deles. O Otto com 12 anos topou, mas a Anna com 6 anos, que estava meio irritada no dia, não topou rsrs.

Já havia trabalhado com ele em projetos com um fim específico, construir e programar o robô X ou construir o game Y, mas nesse gostaria de testar algo completamente aberto e que partisse dele. Pegamos papel e caneta e o estimulei a lançar qualquer ideia. No início houve aquele bloqueio, aquela dificuldade de sair do zero, mas com estímulo, sem críticas ou julgamentos e reforçando que poderia ser qualquer coisa, as ideias começaram a surgir e serem anotadas.

Depois de umas cinco ideias ele escolheu uma. Queria fazer um processo para assepsia das compras que chegavam do supermercado. A mãe estava ficando com alergia nas mãos pelo contato constante com os produtos de limpeza e ele queria ajudar.

Rolou um brainstorming sobre como viabilizar esse processo e ele pensou em uma esteira onde os produtos seriam colocados e mais à frente, jatos com mistura de cloro e água seriam aplicados aos produtos para fazer a assepsia.

Ao detalhar o processo ficou clara a complexidade do conjunto, mas ele me surpreendeu e antes mesmo de eu sugerir ele o fez. Disse que queria começar simples, então faria primeiro algo para conseguir jogar a mistura nos produtos automaticamente. Dei os parabéns pela estratégia e fechamos a noite com esse objetivo.


No dia seguinte começamos com a pergunta: “O que usar para borrifar o líquido?”. Deixei a pergunta aberta e ele ficou um pouco perdido, daí perguntei como fazíamos atualmente. Imediatamente ele pegou um pequeno borrifador que usávamos com álcool 70% para coisas menores e começou a explorar. Estimulei-o a entender melhor o mecanismo, qual o movimento mecânico que fazíamos e como poderíamos automatizá-lo.




Relembramos alguns conhecimentos usados na robótica sobre sensores e atuadores, ficou claro que precisávamos de um atuador. Partimos para os tipos de atuadores e caímos no problema de qual atuador teria força para fazer o movimento que atualmente era feito por uma mão. Nesse momento me veio à mente uma mecanismo que acionava automaticamente o aerossol para perfumar o ambiente (curioso que sou já tinha explorado esse funcionamento há alguns anos). Entreguei o objeto e as ferramentas e sugeri que explorasse para ter referências e novas ideias.




A descoberta dele foi que havia uma fonte de energia (as pilhas), um atuador (um motor DC) e uma série de engrenagens que fazia com que um tipo de alavanca descesse para pressionar o acionador do aerosol. 

Isso gerou uma pergunta: “Qual era o papel das engrenagens?”. Boa pergunta, expliquei um pouco e fomos ver na prática. Pegamos a bicicleta e começamos a explorar as marchas e como aquelas engrenagens estavam relacionadas à força e velocidade. Se queremos mais força precisaremos ter mais voltas do conjunto do pedal movendo menos a roda, se precisamos de velocidade, essa relação é inversa. Mudamos as marchas e vimos isso acontecendo, mas para ser mais intenso, fomos para a prática. Regulei a marcha para mais velocidade e pedi que ele subisse a pequena rampa da garagem. Não conseguiu. Regulei para mais força e ele conseguiu. Aquilo fechou o conceito na cabeça dele, ficou empolgado. Aproveitei para explicar que a “caixa de marchas” do carro segue a mesma lógica.


Em seguida expliquei que aquele motor elétrico que acionava o aerosol tinha pouca força, mas muita velocidade, então, com as engrenagens, era possível usar muitas voltas do motor para mover pouco a peça final, porém com mais força. 

Nós tínhamos em casa um motor que usávamos para projetos de robótica e já com caixa de redução, ou seja, com mais voltas do motor e menos voltas na saída, logo com mais força.

O acionador do aerossol foi uma excelente referência, mas a válvula só precisa ser pressionada uma vez e a pressão do frasco já faz com que o conteúdo saia. Já o nosso borrifador precisa ser pressionado repetidas vezes para lançar o líquido de forma eficiente, então precisaríamos de um movimento repetitivo.




Então surge mais uma pergunta: “Como transformar um movimento de rotação no movimento linear que precisávamos para acionar o borrifador?”. Veio à cabeça aquela imagem do acionamento da roda do trem a vapor e ele conseguiu fazer a conexão com a ideia. Expliquei que aquele mecanismo usava um pistão e fomos pesquisar o funcionamento de pistões. Assistimos a alguns vídeos e o conceito ficou claro.



Identificamos que o movimento linear do pistão faz a roda girar e no nosso caso era ao contrário, o giro deveria provocar o movimento linear, mas, ainda assim, a ideia da engrenagem era a mesma. Então partimos para criar algo parecido com tudo aquilo, mas que pudesse acionar o borrifador.

Decidimos usar um borrifador grande e surge mais uma pergunta: “Será que o motor terá força suficiente para movimentar a alavanca?”. Foi uma deixa para destacar um conceito que felizmente tem se difundido: Teste sua hipótese rapidamente, erre rapidamente e aprenda rapidamente. Então fizemos alguns cálculos para os tamanhos das peças e partimos para o protótipo sem nos preocupar com muitos detalhes ou acabamentos.



Foi ótimo termos gastado pouco tempo no protótipo, pois erramos o cálculo 😅 

Medimos a distância que a alavanca se movimentava até estar totalmente pressionada e colocamos essa mesma medida no braço que fica preso ao motor (a distância entre o eixo da saída do motor e a ponta do braço). Porém no movimento de 0 a 180 graus essa distância dobra 🤦🏻‍♂️





Com o braço se deslocando 6 cm ao invés de 3 cm, o nosso mecanismo tentaria puxar a alavanca do borrifador além do seu limite, mas no teste vimos mais um problema, o sistema não estava tendo força para puxar a alavanca.




Como não conseguiríamos mudar a caixa de redução para obter mais força, achamos que o projeto tinha fracassado e fizemos uma pausa, mas ficamos com aquele problema na cabeça.

Depois de um tempo lembrei do conceito de alavanca e também das brincadeiras com as portas de casa. Chamei o Otto empolgado e fomos para as simulações na porta. Fiquei de um lado da porta, fiz força com a mão apoiando na extremidade e pedi que o Otto tentasse evitar o movimento também apoiando na extremidade da porta pelo outro lado. Depois pedi para que ele fosse apoiando mais para o meio da porta e depois mais perto da dobradiça. Otto ficou impressionado ao perceber que quanto mais próximo ao eixo, mas difícil era de gerar resistência. 

Pensamos: “Será que quanto menor a distância entre o eixo e o final do braço maior será a força do movimento?”. Como já tínhamos que reduzir o tamanho do braço pela metade para corrigir nosso erro de cálculo, valia a pena tentar. E olhe o resultado:






Vimos na prática que os erros tem muito a nos ensinar. Obviamente sempre tentamos acertar no caminho para atingir nosso objetivo, mas temos que dar um novo significado para o erro e o enxergarmos como uma grande oportunidade para muitas coisas, dentre elas o aprendizado.


Conclusão

Fazer um projeto aberto foi uma ótima experiência com muitas oportunidades, mesmo em um projeto simples e rápido. Também foi muito interessante o desafio do imprevisível, de explorar livremente os conceitos a partir de um ponto de interesse da criança.

Porém é importante ressaltar que esse é um processo bem personalizado e com um envolvimento intenso do facilitador. Aplicar esse processo em uma turma de alunos, por exemplo, pode ser um grande desafio.

Também ressalto a importância de repertório para o aluno. Entregá-lo à livre descoberta esperando que pense até chegar a uma conclusão paralela a de um pistão, por exemplo, pode ser bem improdutivo e até mesmo frustrante para a criança.

O “reinventar a roda” se encaixa aqui. É preciso equilibrar conhecimentos e descobertas e considerar criações e conquistas da humanidade para servir de base para que o aluno crie novos projetos ou repense aquele conceito.

Dessa forma, acredito em uma combinação dessas duas coisas. Primeiramente oportunizar aos alunos projetos interessantes e mão na massa, bem definidos, que possam ser aplicados em escala e que explorem um conceito importante para eles, como, por exemplo, pistão, alavanca ou eletroímã. Com o repertório desses projetos, podemos estimular os alunos às próprias criações, desafiando-os a usar aqueles conhecimentos para resolver problemas do interesse e contexto deles. 

Esse foi um pequeno projeto do Otto, facilitado por um pai apaixonado por cultura maker, tecnologia e educação. Espero que tenham gostado e fiquem à vontade para comentar.

Grande abraço.

Comments

  1. Que maravilha, Gustavão! Excelente momento com o filhão, muitos ensinamentos, técnicas de gestão, criatividade, aproveitamento do tempo para brincar, estudar de uma maneira mais gostosa que o nosso tradicional modelo de ensino orientado à tarefa, e tudo com um propósito definido pela equipe, né?! Parabéns mais uma vez!!!

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  2. Sensacional! Todo o processo devidamente documentado. Já é um projeto escolar, certamente.

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